Hoje, gostaria de usar este espaço para fazer algo simples e necessário: celebrar duas vidas extraordinárias. Elas provavelmente se cruzaram pela primeira e única vez numa madrugada de outubro de 1835, quando um navio britânico de nome Beagle passou pela ilha de Pinta ao deixar o arquipélago das Galápagos, no Pacífico. A bordo dele estava Charles Robert Darwin, 26 anos (com 200 aninhos recém-completados nesta semana). O jovem Charles, naturalista do Beagle, pode ter visto, de longe, o vulcão que domina Pinta e as tartarugas-gigantes que povoavam a ilha. Um desses répteis era a fêmea que, muitas décadas mais tarde, botaria o ovo do qual saiu George.
George, o Solitário, é o réptil mais famoso e ameaçado do mundo, o último exemplar da sua espécie, a Geochelone abingdoni. Neste exato momento, geneticistas, veterinários e conservacionistas estão tentando fazer com que George se reproduza e, assim, mantenha acesa a esperança de que sua espécie não desapareça da Terra. E foi só graças aos esforços do jovem Charles – esforços mais divertidos do que a gente poderia imaginar – que os cientistas de hoje conseguem compreender como e por que George é único. Isso é o que pretendo demonstrar nos parágrafos a seguir.
Brincando de naturalista
Primeiro, que tal uma rápida visão de como era ser naturalista na primeira metade do século XIX? Quem passa os olhos pelo “Journal of researches” (“Diário de pesquisas”), relato das viagens de Darwin com o Beagle, dificilmente consegue reprimir um sorriso, em especial se já foi um moleque curioso, louco para escarafunchar terrenos baldios, pequenos riachos e parques em busca de bichos e plantas. As coisas que o jovem Charles conta sobre sua visita às Galápagos transbordam com essa alegria quase infantil de interagir com coisas vivas nunca antes vistas.
Imagine, por exemplo, o pai da evolução escarrapachado em cima de um casco de tartaruga-gigante. “Eu frequentemente subia nas costas delas e então, dando algumas pancadinhas na parte de trás do casco, elas se levantavam e saíam andando”, conta ele. “Uma das grandes, como descobri, andava no ritmo de 60 jardas [cada jarda tem uns 90 cm] em dez minutos, ou 360 por hora – nesse passo, o animal andaria umas quatro milhas [6,5 km] por dia, sem contar um pequeno descanso.”
É claro que ele parou um pouquinho para observar o acasalamento das criaturas. “Os machos copulam com as fêmeas à maneira das rãs – eles ficam unidos por algumas horas. Durante esse tempo o macho solta um grande urro ou bramido, que pode ser escutado a mais de 100 jardas de distância”, escreve Darwin. Ainda sobram comentários sobre o ar cômico que os pescoços dos bichos tinham quando eles saíam a caminhar.
Até aí, nada de muito científico – a coisa está mais para diário de viagem do que para observações penetrantes sobre o comportamento animal. Mas bastou que Darwin tivesse tempo para ruminar sobre o que viu nas Galápagos para que algumas ideias no mínimo interessantes começassem a se cristalizar. Foi interessante, por exemplo, levar em conta as afirmações de Nicholas Lawson, então governador das Galápagos, segundo o qual cada ilha do arquipélago tinha seu tipo único de tartaruga, com forma, casco e tamanho característicos. Essa diferença não faria muito sentido se as espécies das ilhas tivessem sido criadas diretamente por uma divindade – afinal, todas as ilhas estão perto umas das outras e são parecidas entre si -, mas teria toda a lógica se os animais tivessem chegado inicialmente a uma ou duas ilhas, divergindo lentamente uns dos outros conforme o isolamento em cada pedaço do arquipélago se prolongasse. Evolução em ação, portanto.
Os genes de George
Testes genéticos comprovaram esse modelo de forma muito convincente quando foi demonstrada a semelhança de DNA entre as tartarugas das Galápagos e jabutis bem menores da região do Chaco – basicamente o que aconteceu é que os pobres jabutis acabaram sendo levados pelas ondas da América do Sul até as ilhas. Já está provado que os quelônios aguentam essa jornada maluca. Mais importante ainda, as diferenças genéticas entre as populações de cada ilha (e, pior, até dentro de uma das ilhas) são suficientes para que cada tartaruga seja considerada uma espécie distinta.
E aqui começa a tragédia. A partir do século XVI, navegadores, pescadores e baleeiros passaram a usar as Galápagos como ponto de reabastecimento ou fazenda, criando cabras e capturando tartarugas como forma de ter carne fresca durante a travessia do Pacífico. Mais tarde, museus e zoológicos da Europa e dos EUA entraram na dança, recolhendo espécimes a torto e a direito. O resultado é que quatro das 15 espécies de tartarugas das ilhas estão extintas. George aparentemente é o único exemplar “puro-sangue” que sobrou das tartarugas da ilha de Pinta, tendo sido resgatado por pesquisadores em 1971 e levado para a Estação de Pesquisas Charles Darwin, onde ainda vive.
A espécie tem vida longuíssima e talvez seja capaz de chegar aos 200 anos (ninguém sabe com certeza a idade de George). Quando ele morrer, será o fim? Talvez não. Por um lado, os pesquisadores cercaram George com fêmeas de outras espécies, para tentar levá-lo a produzir ao menos filhotes híbridos, o que ainda não deu certo. Mas recentemente novas análises genéticas flagraram um mestiço da espécie de George com tartarugas da ilha de Española, ainda vivo. Trata-se de um macho também, mas os pesquisadores responsáveis pela descoberta, liderados por Adalgisa Caccone, da Universidade Yale, acham que dificilmente ele é um caso isolado. Achando-se outros híbridos, será possível dar início a um programa de cruzamento que, daqui a algumas gerações, conseguirá resgatar mais de 90% do patrimônio genético da espécie de Pinta.
Sem as observações pacientes e engraçadíssimas de Darwin, a biologia evolutiva jamais teria chegado ao nível de conhecimento necessário para entender a história familiar de George e saber o quanto ele é único. A teoria da evolução é a ferramenta mais bem-sucedida que existe para reconhecer a riqueza e a diversidade da vida que está sob nosso cuidado aqui na Terra. Cá entre nós, ainda sinto que essa aparente tragédia ainda vai terminar como toda boa comédia: em casamento. Feliz aniversário, Charles. Vida longa e bebês de montão, George.
QUE TEXTO INTERESSANTE.
ResponderExcluirNÃO SABIA QUEM ERA GEORGE,AGORA JÁ SEI.
CONTINUE MOSTRANDO CURIOSIDADES COMO ESSA.
BEIJO ROUXINOL.
VALEU BEIJA-FLOR! CONTINUE EM CONTATO.
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